
No passado dia 20 de Agosto entrou em vigor a nova Lei da Saúde Mental (Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho), a qual veio corrigir o anacronismo no que à aplicação da Lei Penal dizia respeito, face ao previsto na nossa Constituição, onde está estabelecida a regra de que não pode haver privação de liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
Em bom rigor, como as coisas estavam, havia cidadãos portugueses que, apesar da Constituição da República não prever a pena de prisão perpétua, estavam sujeitos a esta por regras quase administrativas do sistema judicial.
Falo assim, dos inimputáveis que, ao abrigo do então n.º 3 do artigo 92º do Código Penal, estavam condicionados à possibilidade de prorrogação indefinida da medida de segurança de internamento, com uma duração ilimitada, apesar das reavaliações, o que lhe dava um carácter perpétuo.
Na prática, a nova Lei vem, neste caso em particular, revogar a possibilidade de prorrogação sucessiva do internamento para lá do limite máximo da pena correspondente ao crime praticado.
Pois bem, se essa alteração é de louvar, na medida em que reconhece, efetivamente, que todos os cidadãos, independentemente do seu estado de saúde, não podem ser privados de liberdade para além do que resulta da condenação por um crime, a forma como a mesma vai ser operacionalizada já é outra conversa.
Ao longo dos últimos anos, a rede de unidades hospitalares de âmbito psiquiátrico tem sido desmantelada, ao invés de ser requalificada, remodelada e atualizada, e tudo sob o lema e a justificação de que é preciso inserir os cidadãos doentes mentais nas suas comunidades.
Como princípio não podia estar mais de acordo, no entanto, o País não pode deixar de ter um conjunto de estruturas devidamente preparadas e modernizadas para cuidar dos doentes mentais, e que agora, com esta alteração no quadro legislativo, passaram a ser ainda mais importantes.
Na realidade, o Estado, mais uma vez, vai deitar mão da rede de organizações da Sociedade Civil, nomeadamente das Instituições de Solidariedade Social, para acolher cidadãos inimputáveis condenados por um qualquer crime, e cuja pena já terá sido cumprida.
Por isso, muitos deles serão encaminhados para os tradicionais Lares de Idosos, seja para a modalidade de vagas cativas, ou seja para a modalidade de vagas hospitalares, estas últimas recentemente criadas para libertar as camas dos hospitais cuja ocupação apenas se mantém por razões de natureza social.
Poderão dizer que não, que não é isso que se pretende e nem será esse o espírito da nova Lei.
Contudo, a forma como o Estado lida com as problemáticas consubstancia o contrário, e sendo de louvar o objetivo desta alteração ao quadro legal para os inimputáveis por razão de doença mental, não se vislumbram medidas significativas a jusante que permitam a adequada reinserção destes cidadãos.
O acompanhamento destas pessoas, especialmente se forem portadoras de uma doença mental que acarreta comportamentos de alguma perigosidade, implica uma proximidade dos serviços de psiquiatria muito significativa, serviços estes que estão concentrados agora nos grandes hospitais centrais, ou em estruturas psiquiátricas elas próprias desmanteladas ao longo dos últimos anos.
Assim, se por um lado os serviços de saúde mental estão compactados, mesmo que se promova e apregoe a consulta deslocalizada para os Agrupamentos de Centros de Saúde (consultas estas sempre dependentes da existência de viatura, motorista, espaços, horários, etc, etc), as Instituições da Sociedade Civil não estão dotadas com os recursos necessários ao apoio destes cidadãos, pois as respostas sociais que desenvolvem não estão vocacionadas para esse fim.
Mais uma vez o Estado, e neste caso quem o representa, legisla sem que, atempadamente, tenha desenhado no terreno respostas adequadas ao acompanhamento destes cidadãos, empurrando para a Sociedade Civil a responsabilidade de responder a este novo desafio.
Como sempre, serão as Instituições inseridas nas comunidades que procurarão responder e serão chamadas a responder, sejam elas IPSS, Misericórdias, Fundações ou outras, e como sempre, chegará um momento em que estas serão descartadas e abandonadas à sua sorte, especialmente quando as polémicas ressurgirem e não tardará muito, na medida em que todos os anos temos a época dos fogos….