A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), na sua 201ª Assembleia Plenária, anunciou a criação de uma Comissão Nacional com o intuito de reforçar e alargar o acompanhamento de casos de alegados abusos sexuais no seio da Igreja Católica Portuguesa, tendo em vista o “apuramento histórico desta grave questão”, perspetivando-se a apresentação do respetivo relatório no decurso do próximo ano de 2022, salvo se condicionantes de força maior não vierem a surgir.
Esta Comissão destina-se ainda a coordenar as 21 Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, já existentes e que são compostas por leigos de áreas específicas como a Psicologia, o Direito ou a Psiquiatria.
A instituição desta Comissão Nacional no seio da Igreja veio responder a uma carta assinada por mais de 270 católicos e dirigida à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) para que fosse realizada uma investigação independente a esta problemática, sendo que, de acordo com a referida missiva, “não existe alternativa” e a CEP “deve tomar a iniciativa”.
A nova Comissão Nacional conta com personalidades como Pedro Strecht, Médico Psiquiatra e coordenador da Comissão, Álvaro Laborinho Lúcio, Juiz-Conselheiro Jubilado do Supremo Tribunal de Justiça e antigo Ministro da Justiça; Ana Nunes de Almeida, Socióloga e Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Daniel Sampaio, Psiquiatra e Professor Catedrático Jubilado; Filipa Tavares, Assistente Social e Terapeuta Familiar; e Catarina Vasconcelos, Cineasta.
Como Cristão Católico que sou, não posso deixar de reconhecer a enorme coragem demonstrada pela CEP na criação desta Comissão Nacional que, desde logo, dará conteúdo e visibilidade às ditas Comissões Diocesanas, as quais a grande maioria dos crentes desconhece existirem.
No entanto, este exemplo de coragem demonstrada pelos Bispos Portugueses, que olham agora para este problema dos abusos sexuais “sem medo”, tem a sua génese no exemplo do Sumo Pontífice, o Papa Francisco que, com humildade, reconheceu esta chaga na Igreja, pedindo perdão por isso.
O Papa Francisco tem tido a coragem, dentro e fora de portas, de retomar e refundar uma Igreja em que somos todos “pedras vivas”, e onde todos têm lugar, sem que sejam excluídos ou se sintam excluídos, e não é tarefa fácil, pois tantas são as resistências a essa mudança.
É por isso que, se gestos como estes são um ato de coragem, também não deixam de o ser uma manifestação de uma certa hipocrisia secular.
Ao longo de décadas, e até séculos, a Igreja tem padecido de abusos sexuais no seu seio, a grande maioria encobertos pelo tempo e pela memória, ou falta dela.
Uma Igreja cuja figura central é uma criança, nascida na pobreza de uma manjedoura, rodeada pela figura dos seus pais e aconchegada pelo calor dos animais.
Esta figura inocente e pura, dentro de alguns dias será invocada e celebrada, falo pois do Menino Jesus, e só isto bastaria para que a Igreja tivesse perseguido, implacavelmente, mas com sentido de justiça, todos aqueles que no seu seio abusaram de crianças indefesas e que lhe foram confiadas à sua guarda.
A Igreja atual, só pode encontrar nas suas raízes cristãs o sinal de modernidade, sem que daí perca qualquer identidade, mas antes a valorize ao serviço dos que mais necessitam.
Uma Igreja que vê nas crianças o seu futuro, e na preservação ambiental uma das suas marcas de futuro, e tudo isto o Papa Francisco tem transmitido, muitas vezes contra as vozes que ecoam em surdina dentro da própria “Santa Madre Igreja”.
Depois, a criação de uma Comissão Nacional com estas personalidades, terá que ter efeitos e resultados práticos, não poderá esconder-se nos subterfúgios e interpretações do Direito Canónico ou nos Paços das Casas Episcopais, e para que isso não suceda, as suas consequências deverão recair no campo da Justiça dos Homens.
Sei que a Justiça Divina não falha, mas pode tardar, pois o tempo de Deus é infinitamente incompreensível no tempo dos Homens e por isso, é preciso dar aos Homens o direito à justiça terrena.
Não posso escamotear que muitos dos crimes poderão ter prescrito no tempo terreno, mas até esses terão e deverão ser denunciados, sempre com o sentido de justiça que se impõe, com a preservação dos direitos dos envolvidos para que, aí sim, haja justiça plena, mesmo que incompleta.
É tempo de enaltecer a coragem da Igreja, mas sem esquecer a hipocrisia que a antecedeu e que ainda vai espreitando por cima desta e de outras Comissões.
Dizer que não existiu, ou que não existe, hipocrisia neste processo, é desvalorizar o próprio gesto de coragem que a Igreja vai tomando por esse mundo fora e cujos resultados começam agora a surgir.
NUNO GOMES (Director de A COMARCA DE ARGANIL)