
José da Pena era o escriba lá do burgo, calcorreando as ruas e vielas da vila, com máquina fotográfica a tiracolo, e com ela registava os buracos que ia encontrando.
Depois, passava-as para o folhetim mensal, acompanhando-as com palavras mordazes apenas acessíveis à língua afiada que se alimentava, avidamente, no dicionário que guardava, religiosamente, na sua secretária.
Nessas deambulações, fazia-se acompanhar pela sua sempre presente companheira que dava pela graça de Maria Croquete.
Juntos, quais justiceiros, lá iam “cherinhando” os recantos mais sombrio do vilarejo, e não raras vezes, Maria Croquete “assobiava” ao ouvido de José da Pena sobre o que escrever, especialmente quando alguma vizinha não lhe dava as mordomias da saudação.
Na realidade, ninguém queria problemas com aquele duo maravilha, os quais davam uma chouriça a quem um porco lhes oferecesse.
Contudo, esta equipa fantástica deleitava-se com os almoços grátis, nos quais tinham ficado peritos e conhecidos.
José da Pena, sempre a cirandar, rua acima e rua abaixo, logo se convidava, ou fazia-se convidar, para os bailes da elite cultural, ou mesmo da alta burguesia lá do sítio.
E ai de quem não deixasse entrar o representante do povo, como tanto gostava de se apresentar e intitular, para assim saborear as delícias que a mesquinhez que o açoitava, não lhe permitia saborear em sua casa.
Mas, José da Pena era senhor de posses, fruto da inocência e ingenuidade de terceiros, gostando contudo, de se apresentar sob a falsa modéstia e inábil humildade para assim, ter portas abertas para as comezainas dos bailes da paróquia, ou saraus culturais, onde, de outra forma, nunca poderia entrar.
No entanto, se assim era para José da Pena, também Maria Croquete não lhe ficava atrás, sempre acompanhando o seu parceiro de anos, não se coibindo de, levando a sua mala, ou qualquer saco mal-amanhado, tratar de trazer da mesa dos anfitriões, escondido no seu regaço, sustento para o dia seguinte.
E ai de quem fizesse reparo nesse ato de indecoro e postura fuinha, pois logo sobre tal incauto comentário, era certo e sabido, que logo a viperina língua escrita de José da Pena cairia.
Seus colegas não gostavam de tal comportamento, acabando por ter de levar com a crítica de quem os acolhia em idênticas sessões.
Então Manuel Canavilha – nome de colega de José da Pena – não trouxeste alcofa para o repasto? E Companhia para que se mate a fome a mais uma boca?
Tal situação não era nada a que o “Zé Pagode” já não estivesse habituado e até, às escondidas entenda-se, fazia chacota e anedota de José da Pena e Maria Croquete.
Enfim, tais hábitos, entre outros, guindara a dupla a um patamar de aparente intocabilidade, mesmo que uma parte da descendência genética gostasse de levar consigo bem mais do que os rissóis do costume.
José da Pena pensou então: “e porque não passar a receber a jorna do Mês, sem ter de trabalhar e aproveitar melhor o repasto oferecido”. E se assim pensou, melhor o fez!
Logo tratou de chamar Maria Croquete, e aproveitando as maleitas da idade, acertou uma forma de gozar o plano gizado, sem ter que suar as estopinhas, calcorreando rua acima e rua abaixo.
E disse – “Maria Croquete traz-me umas lunetas de ver ao longe e com grande alcance para dessa forma espiar a vida alheia, sem ter que me deslocar para escrever umas linhas que tu tratarás de entregar no destino e assim, ganhar a jorna sem mais nada fazer”.
Que grande ideia, pensava José da Pena e já agora, Maria Croquete.
Não contavam contudo, com a paciência já esgotada de quem lhe pagava a jorna, e que não era assim tão pequena para quem se apresentava como um trabalhador incansável e desvalorizado.
Obviamente, José da Pena não gostou de ser chamado à atenção por desrespeitar colegas de profissão e a longa história do folhetim que lhe dava a retribuição por serviços prestados e que deixariam de o ser, pois não é do recato do lar que se faz a cobertura dos bailes da paróquia, ou os saraus culturais e outros acontecimentos da vila.
Vai daí, e convictos na força e poder da dupla que compõem, José da Pena e Maria Croquete, esta última com a garantia de que as forças insondáveis do além levariam a bom porto sua interesseira pretensão, bastando para isso cortar umas cabeças de galinhas pretas, logo trataram de lançar uma cruzada para que a lume viesse a putativa ingratidão para com tão amável e altruísta casal.
Assim, logo providenciaram uns quantos incautos, inocentes e generosos amigos para que, desconhecendo a verdade das coisas, se prontificassem ao sacrifício supremo de darem a carne e o sangue para que José da Pena tivesse (i)merecido reconhecimento, capaz de fazer esquecer tal falta de paciência de alguém que achava injusto pagar-se o trabalho de quem não o fez.
No entanto, havia na vila e na mesma rua em que morava José da Pena, um tolo de seu nome Malaquias, que conhecendo Maria Croquete das lutas que travava pelos caixotes de lixo, e onde esta rebuscava os restos dos outros na esperança de neles encontrar algum segredo, ou algo de valor que provesse a essa mesquinhez deslavada, que logo bradou aos céus:
“Eu que sou tolo, tenho juízo para saber que não se cospe no prato onde tanto se comeu e outro tanto se deu a comer, e muito menos é merecedor de homenagem quem a pede ou a encomenda”.
Na realidade, o tolo Malaquias fez ver a alguns, que andavam apenas ao engano e no engano iriam cair, pois a José da Pena e a Maria Croquete, apenas interessava gastar dos outros o pouco que esses tinham, poupando, pelo contrário, os seus largos bens, e para que não se lhes descobrisse a carapuça que melhor seria do que uma estátua na avenida, com honras de dedicado servidor.
Neste tempo de Quaresma que lição o tolo Malaquias nos dá, tal como figura do “Auto da Barca do Inferno” de Gil Vicente que, na voz sábia de um desvalido de ideias, faz mostras da falta de humildade, e da falsa modéstia como pecados capitais, porquanto nelas se abriga a ganância e a ambição de homenagens imerecidas.
Nota: este é um conto ficcional que pretende realçar os valores da Quaresma e da Páscoa, do perdão e da verdadeira humildade, e toda e qualquer semelhança com a realidade foi pura e infeliz coincidência.
NUNO GOMES (Director de A COMARCA DE ARGANIL)