
124 anos depois do seu nascimento, recordamos hoje o dr. Fernando Valle, o homem, o médico, o humanista, o político que pela sua vida obra e citando Camões, foi daqueles “que por obras valerosas, se vão da lei da morte libertando”.
Nascido em 30 de Julho de 1900, na Cerdeira, do concelho de Arganil, Fernando Baeta Cardoso do Valle, era filho do médico Alberto da Maia e Cruz do Vale e de Maria Adelaide da Costa Cardoso do Vale, fez a instrução primária em Coja e o ensino secundário no Colégio de S. Pedro e no Liceu Central de José Falcão, em Coimbra, e licenciou-se em Medicina, com distinção, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
Ainda estudante, Fernando Valle participou activamente nas lutas reivindicativas da Academia de Coimbra, sendo membro da comissão reorganizadora do Centro Republicano Académico de Coimbra e tendo participado, no início de 1926, na comissão organizadora da “Semana da Seara Nova” e, em 1923, é iniciado na Maçonaria, na Loja Revolta, adoptando o nome simbólico de Egas Moniz.
Em 1927, o dr. Fernando Valle regressa a Arganil como médico municipal, onde começa a sua vida de uma dedicação sem limites aos seus doentes e, como alguém escreveu, ”ficava a comida no prato se o chamavam para ir ver algum doente, tivesse ele gripe ou cólera. A todas as horas do dia ou da noite, a chover ou a nevar, a pé ou a cavalo, qual novo ‘João Semana’, de seringa e pílulas na maleta, ia tentar curar febres ou feridas, entrites e escleroses, maleitas e mazelas”. E fazer partos (sou um dos que ajudou a nascer).
Era assim o dr. Fernando Valle e, muito mais do que isso. Era considerado ainda “o médico dos pobres”, porque do pouco dinheiro que recebia e a que tinha direito, muitas vezes além de não levar dinheiro pela consulta, ainda deixava na mesa dos mais pobres o dinheiro para ir comprar os medicamentos de que necessitava. Ainda há testemunhos disso. Praticava o verdadeiro e autêntico humanismo, a solidariedade de que hoje tanto se fala, mas que na maior parte das vezes… não passa disso mesmo, de palavras.
Além de médico, destacou-se ainda pela sua actividade cívica e associativa
Em tempos muito difíceis, mas sempre com a preocupação de dar o melhor e uma melhor assistência aos seus doentes, em Janeiro de 1930 o dr. Fernando Valle lança uma campanha para aquisição de um aparelho de Raios X para o Hospital Condessa das Canas, onde se chegaram a fazer também cirurgias por médicos especialistas e amigos trazidos pela sua mão. Mas além de médico, destacou-se ainda pela sua actividade cívica e associativa e, em 1933, foi um dos fundadores (e primeiro presidente) da Sociedade Recreativa Argus, de que resultou mais tarde a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários Argus (de que era o sócio n.º 1), juntando todas as associações existentes em Arganil.
Em 1940, o dr. Fernando Vale é nomeado Subdelegado de Saúde em Arganil e funda o posto médico da Assistência Folquense, em que sempre trabalhou gratuitamente e, sem nunca deixar de intervir politicamente, em 1943 apoia o MUNAF – Movimento de Unidade Nacional Antifascista, desenvolve actividades no âmbito do MUD – Movimento de Unidade Democrática, em 1944 integra a União Socialista que resulta da fusão do Núcleo de Doutrinação e Acção Socialista com a União Democrática, em 1948 é vice-presidente da comissão distrital de Coimbra da Campanha de Norton de Matos à Presidência da República.
E por todo o seu envolvimento e acção política contra o regime, “por ser desafeto ao regime ditatorial”, em 1949 Fernando Valle é demitido do cargo de médico municipal e Subdelegado de Saúde por deliberação do Conselho de Ministros. Apoiou a candidatura de Humberto Delgado e, mais tarde, a actividade clandestina das Juntas de Acção Patriótica, o que levou à sua prisão pela PIDE entre 27 de Abril e 29 de Junho de 1962, na cadeia do Aljube.
A ditadura tentou afastar Fernando Valle do Hospital da Misericórdia de Arganil… mas as mulheres de Arganil não deixaram
Em 1971, a ditadura tentou afastar Fernando Valle do Hospital da Misericórdia de Arganil, o que acabou por se frustrar com uma manifestação de mulheres exigindo a sua permanência no seu Hospital, no Hospital da Santa Casa da Misericórdia que sempre serviu com uma dedicação sem limites e, anos mais tarde, a instituição haveria de lhe prestar justa homenagem dando o seu nome à casa onde viveu, com a família, e que é hoje o Hospital de Cuidados Continuados Dr. Fernando Valle.
Em 19 de Abril de 1973, o dr. Fernando Valle participou, clandestinamente, em Bad Münstereifel, na Alemanha, na fundação do Partido Socialista. Após 25 de Abril de 1974, presidiu à comissão administrativa da Câmara Municipal de Arganil, depois foi designado Governador Civil de Coimbra (1976-1980) “onde terá tido um papel importante na contenção de alguns distúrbios aquando do Verão Quente de 1975” e, mais tarde, foi eleito presidente honorário do PS, regressando sempre a Arganil e a Coja, à sua casa em Santa Clara (onde escondeu tantos perseguidos pela PIDE), onde continuou a exercer medicina e onde deixou trabalho significativo na área do associativismo local.
De entre outros reconhecimentos, o dr. Fernando Valle foi distinguido com Medalha de Ouro do Concelho de Arganil, foi ainda agraciado com o grau de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, com o grau de Grã-Cruz da Ordem do Mérito, com a Medalha de Ouro do Cinquentenário da Ordem dos Médicos (a cuja Comissão Regional do Centro presidiu, entre 1975 e 1989).
No final dos anos 90, a Ordem dos Médicos criou o Prémio Dr. Fernando Valle, destinado a distinguir o trabalho dos clínicos gerais, “um galardão que particularmente o sensibilizou, por o ver como uma homenagem à forma como desenvolveu a actividade em benefícios dos desprotegidos”. Faleceu em 27 de Novembro de 2004, com 104 anos de idade, sendo então reconhecido como “uma das maiores personalidades do PS e de Portugal” e “um homem de valores e de constante luta pelo reforço do exercício da cidadania dos portugueses”. Foi uma vida longa de um homem que, como o definiu também – e tão bem – o seu amigo Miguel Torga na frase que escreveu (e gravada na placa junto ao seu busto no antigo Hospital Condessa das Canas), “Nenhuma prepotência o vergou e desviou do rescto caminho cívico da tolerância, da justiça e da liberdade”.