
No último fim-de-semana terminou o XIV Congresso das Misericórdias Portuguesas, marcado não apenas pela ausência de mais de dois terços destas Instituições, num universo de 388 Santas Casas, mas de igual modo pela impossibilidade destas usarem da palavra de forma livre e espontânea.
Poderá parecer algo inacreditável, mas é a mais pura realidade.
Onde antes as Instituições intervinham na componente do debate, e após as apresentações de cada um dos oradores convidados, passaram, neste último Congresso, a estar sujeitas à apresentação prévia, e por escrito, das questões, as quais eram ainda sujeitas ao escrutínio da organização, antes de serem colocadas aos palestrantes.
Escusado será dizer que algumas das questões não chegaram a ser colocadas aos oradores e outras foram, simplesmente, “engavetadas”.
No ar ficou a dúvida se tal metodologia foi instituída para controlar as Misericórdias participantes e a crescente contestação que nelas se instala, ou se foi para mitigar quaisquer contratempos aos responsáveis políticos convidados e presentes.
Certo era que muitas das Instituições pretendiam utilizar o espaço de debate para denunciar a situação calamitoso em que o Setor Social (Setor Cooperativo e Social em bom rigor) se encontra em Portugal, com muitas das Instituições que aí estão localizadas em termos de atividade, a verem-se na contingência de encerrarem respostas sociais para as quais a comparticipação do Setor Estado está distante das reais necessidades de funcionamento.
Com efeito, grassa de norte a sul do País e regiões autónomas, um sentimento de abandono, não apenas pelo parceiro Estado, mais preocupado em exigir e fiscalizar aquilo de que não é capaz de implementar para si, mas também pelas entidades representativas do Setor Social, as quais se têm revelado completamente ineficazes na exigência daquilo que lhes pertence por direito.
Em bom rigor, o Estado definiu um Modelo de Proteção Social que radica numa estreita colaboração com a Sociedade Civil, não apenas por razões históricas e culturais, mas acima de tudo, por razões económicas e aqui, entenda-se, por incapacidade económica desse mesmo parceiro Estado.
Hoje, o Estado poupa muito dinheiro quando contratualiza com a Sociedade Civil o desenvolvimento de uma rede de equipamentos sociais, e sabe que esta está bem mais próxima dos cidadãos do que outra qualquer estrutura, seja ela da responsabilidade do Estado central ou do Estado local.
Sabe ainda, que uma parte significa da descentralização de competências para as autarquias, nomeadamente nas áreas da saúde e intervenção social, são apenas um engodo para mumificar as instituições do terceiro setor, transformando-as dependentes do Poder Local para as comparticipar e, desse modo, resolver o problema de subfinanciamento ou, com mais certeza, sacudir responsabilidades desse mesmo subfinanciamento.
Sabe também, que é mais fácil fiscalizar, sancionar e aplicar coimas, do que propriamente gerir diretamente e prestar os serviços em causa.
O que se esquece na maioria dos casos é que essa rede tem custos de funcionamento e manutenção, já para não falar do investimento, e aí o Estado, seja ele central ou local, é muito esquecido!
Há quem defenda uma rede pública para tudo, exclusivamente financiada pelos nossos impostos, sabendo-se contudo que, pela forma como o Estado gere a coisa pública e o bem comum, a atual carga fiscal está longe de poder satisfazer o desejo desses mais acérrimos defensores dessa realidade virtual.
Mas se um modelo de proteção social exclusivamente público é economicamente inviável, também não se pode esperar que seja a Sociedade Civil a suportar em grande medida o funcionamento de uma rede de Instituições de Solidariedade Social que prestam serviço público.
No entanto, e infelizmente, o que hoje sucede é que a Sociedade Civil, seja pela comparticipação das famílias, ou seja pelo contributo das Instituições, é quem suporta grande parte dos custos de funcionamento desta rede de equipamentos que presta serviço público.
Talvez por isso, haja inúmeras instituições de solidariedade social a fechar respostas e equipamentos sociais, e, se nada mudar, será esse o destino de uma parte significativa do Setor Solidário.
Contudo, o que não se espera é que quem representa as inúmeras Instituições de Solidariedade, sejam elas Misericórdias, Instituições Particulares de Solidariedade Social, Cooperativas Sociais ou Mutualidades, seja, conivente com um ideal que visa anular a ação da Sociedade Civil, materializada nestas entidades que emanam das comunidades.
E se nada for feito, muitas das Instituições que contribuem para a fixação de jovens no Portugal esquecido, que retardam a desertificação e permitem a coesão local, terão que encerrar portas.
NUNO GOMES (Director de A COMARCA DE ARGANIL)